Campanha que prega a abstinência sexual como política de combate a gravidez na adolescência é lançada nesta segunda-feira pela ministra Damares Alves. Projeto não prevê ações de educação sexual e nem distribuição de preservativos. Em Florianópolis, postos de saúde enfrentam o desabastecimento de contraceptivos.
“Por muitos anos, o Brasil só ofereceu para os jovens alguns métodos de prevenção a gravidez. A camisinha, o preservativo, o anticoncepcional”, afirmou a ministra Damares Alves em uma entrevista concedida à Gazeta do Povo no dia 17 de dezembro de 2019.
À frente do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares apresentava a nova diretriz do governo federal para o combate à gravidez na adolescência. A campanha sugere como estratégia incentivar que os jovens façam abstinência sexual.
“Tem um método muito eficaz: a abstinência. Eu posso chamar também de retardar o início da relação sexual”, disse Damares.
“As nossas adolescentes, em sua maioria, estão tendo relações sexuais por uma pressão sexual. Se você não tiver relação sexual você não é linda, amada e desejada”, completou a ministra.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde) o adolescente é compreendido como indivíduo com idades entre 15 e 19 anos completos.
A campanha será lançada em parceria entre o Ministério liderado por Damares e o Ministério da Saúde, conduzido por Luiz Henrique Mandetta.
Em meio a expectativa para o lançamento, entidades e especialistas apontam maneiras opostas de lidar com a questão da gravidez na adolescência.
Como funciona a estratégia
A campanha está sendo lançada nesta segunda-feira, 3 de fevereiro de 2019, durante a primeira Semana Nacional de Prevenção à Gravidez na adolescência. Sua realização está prevista na lei nº 13.798.
A legislação foi um dos primeiros projetos aprovados pelo governo Jair Bolsonaro nos primeiros dias de mandato. Assinada no dia 3 de janeiro de 2019, ela prevê que o evento aconteça anualmente.
Planejada para o público de 10 a 18 anos, a campanha é baseada, segundo o Ministério, em estudos científicos que mostram o êxito dessa iniciativa.
Procurado pelo ND+, o Ministério não disponibilizou os estudos. A política da abstinência é uma prática de governo em países como EUA e Uganda.
O Ministério também afirma que a medida não contrapõe a distribuição e as políticas de incentivo ao uso de preservativos, mas não deixou claro como serão feitas as ações.
Sociedade de pediatria contesta
A SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) criticou a estratégia do governo e destacou que a ausência de métodos contraceptivos e a falta de acesso a programas de planejamento familiar contribuem para o aumento de casos.
“Embora teoricamente protetoras, as intenções de abstinência geralmente falham, pois a mesma não é mantida e estes programas não são eficazes para retardar o início das relações sexuais ou alterar comportamentos de risco”, diz a nota.
A entidade, referência nos estudos de pediatria do Brasil, contesta a eficácia dos programa americano de abstinência. Segundo a SBP, tais projetos não instruem ao uso de métodos contraceptivos.
Para a SBP, o combate à gravidez na adolescência combina programas de educação sexual e a orientação quanto ao uso de anticoncepcionais.
“Dentre os fatores que têm contribuído para o aumento da gravidez na adolescência, destacam-se o início precoce da atividade sexual associado à ausência do uso de métodos contraceptivos, além da dificuldade de acesso a programas de planejamento familiar e sobretudo falta de informação adequada sistematizada para os jovens”.
Especialista em direitos da criança e do adolescente, a psicóloga Maíra Marchi Gomes acredita que as políticas de combate devem ser amplas.
“Existem meninas que engravidam porque na comunidade onde vivem é a única maneira de elas terem um lugar social, uma identidade, o lugar de mãe. Com isso, ela vai ser respeitada e não vai ser assediada”, destaca.
Maíra fala ainda da ausência do Estado na vida desses adolescentes. “Esse sujeito sem acesso à saúde, transporte, saneamento e educação não se sente reconhecido. Não é um cidadão”, pontua.
Para a psicóloga, falar de sexualidade não é apenas falar sobre o ato sexual. “A gente tem que falar de sexualidade, pois é só assim que as pessoas vão trazer seus conflitos, medos, desejos e angústias”.
A conversa, segundo Maíra, contribui também para que se evite abusos psicológicos e físicos.
Índice acima da média mundial
O Brasil tem índice de gravidez na adolescência acima da média mundial. Enquanto a taxa no mundo é de 46 nascimentos para cada 1 mil adolescentes entre 15 e 19 anos, no Brasil, o número é de 68,4 nascidos.
Os dados pertencem ao relatório “Aceleração do progresso para a redução da gravidez na adolescência na América Latina e no Caribe“ da OMS (Organização Mundial da Saúde) divulgado em 2018.
A taxa brasileira é superior também à média latino-americana e caribenha, que tem a segunda pior marca mundial. A marca das Américas é superada apenas pela África Subsaariana.
O relatório relaciona também a escolaridade dos adolescentes a propensão a gravidez. Segundo a OMS, adolescentes com apenas educação básica têm quatro vezes mais chances de ficarem grávidas em comparação a jovens com ensino médio ou superior.
Outro questão avaliada é a renda familiar. De acordo com o relatório, adolescentes com rendas inferiores têm de três a quatro vezes mais chances de engravidar em relação a jovens da mesma idade com rendas superiores.
Fora da escola, pobres e negras
A gravidez na adolescência é um dos principais problemas de saúde pública para essa faixa etária. Uma a cada cinco crianças no Brasil é filha de mãe adolescente.
A informação faz parte da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
O levantamento feito em 2015 mostra que a maior parcela de adolescentes grávidas no Brasil está concentrada nas classes D e E, com rendas que chegam até quatro salários mínimos.
A maioria dessas jovens não tem ensino fundamental completo ou finalizou o ensino básico em idade superior a prevista nas metas da movimento TPE (Todos pela Educação) — que é de até 16 anos. A média de anos de estudo é 7,7 anos.
A população que se declara preta e parda é a mais representativa entre as adolescentes grávidas, representando 69% dos casos.
“Os índices apontam para uma necessidade de políticas públicas que enxerguem esses fatores e ofereçam perspectivas de futuro, de forma que jovens mulheres em regiões periféricas tenham opções de trabalho e estudo que as levem a adiar a maternidade. Para muitas dessas pessoas, ter uma família e filhos é a única opção vislumbrada”, destaca a representante do UNIFPA (Fundo de População das Nações Unidas no Brasil), Astrid Bant.
O UNIFPA é a agência da ONU (Organização das Nações Unidas) responsável por ações de garantia ao acesso universal à saúde sexual e reprodutiva. As prerrogativas do órgão incluem o direito à maternidade segura.
Astrid aponta que mesmo o Brasil tenha uma taxa de fecundidade de 1,7 filhos por mulher, considerada baixa, a gravidez indesejada na adolescência é uma realidade.
“É preciso melhorar o acesso à informação, seja em casa, nas unidades de saúde ou escolas. Hoje, a juventude se informa principalmente por meio da internet, o que pode resultar em informações sem filtro, errôneas e distorcidas. A informação nítida e acessível, combinada a uma ampla distribuição de insumos, como métodos contraceptivos, ajuda as pessoas jovens a realizarem escolhas mais conscientes”, pontua.
Preservativos estão em falta na saúde pública
Em Florianópolis, faltam camisinhas e DIU nos postos de saúde. Os contraceptivos, distribuídos pelo governo federal, chegaram em quantidade inferior ao solicitado em pelo menos seis meses de 2019.
O caso mais grave foi em julho do ano passado, quando foram recebidos 43 mil preservativos. Segundo a Secretaria de Saúde de Florianópolis, a demanda mensal nos postos de saúde é de 130 mil.
Nos meses seguintes, a quantidade continuou baixa com 93 mil camisinhas em agosto, 64 mil em outubro e 72 mil em novembro.
Nos meses de setembro e dezembro — no último vieram dois carregamentos de 72 e 129 mil — o recebimento foi próximo ao solicitado pelo município.
Falta de DIU é problema nacional
O DIU (Dispositivo Intrauterino) é um método contraceptivo com eficácia superior a 99%. Em forma de “T” o dispositivo é colocado dentro do útero e dura até seis anos.
Ele é disponibilizado gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde), mas há dois meses não é encontrado nos postos de saúde de Florianópolis.
De acordo com a Secretaria de Saúde de Florianópolis, a falta do DIU na rede pública é um problema nacional.
Caderneta controversa
Em março de 2017, o presidente Jair Bolsonaro disse ter pedido ao Ministério da Saúde o recolhimento das cadernetas de saúde do adolescente.
O material, segundo o presidente, “mostra certas figuras que não caem bem para meninos e meninas de 9 anos terem acesso”.
A caderneta apresenta imagens sobre a prevenção da gravidez e doenças sexualmente transmissíveis.
Em Florianópolis, o material continua sendo distribuído nos postos de saúde. Segundo a Secretária de Saúde de Florianópolis, o material é entregue aos adolescentes após consultas nos postos de saúde.
O Ministério da Saúde alega que a caderneta não foi descontinuada. Segundo o órgão, o material está sofrendo adequações diferenciando as faixas etárias de adolescentes com menos de 14 anos e aqueles entre 15 e 17 anos.
Políticas anteriores
Diferente da política proposta por Damares, os governos Michel Temer e Dilma Rousseff tinham como principais ações a distribuição de métodos contraceptivos pelo SUS e uma rede de apoio às mães.
No primeiro mandato de Dilma foi criada a Rede Cegonha. A estratégia do programa era a de estruturar e fornecer suporte à saúde materno-infantil. O objetivo era garantir o nascimento seguro e o desenvolvimento saudável.
O índice de mortalidade entre mães adolescente no Sul do Brasil era de 17%, enquanto que o de mulheres com mais de 35 anos era de 13%.
Os dados fazem parte de um levantamento da Fundação Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos) divulgado em 2011.
Em 2017, a gravidez na adolescência teve uma queda de 17%, segundo dados do Sinasc (Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos) do Ministério da Saúde.
Em números absolutos, a redução foi de 661.290 nascidos vivos de mães entre 10 e 19 anos em 2004 para 546.529 em 2015. Na região Sul, a queda foi de 11% naquele ano.
Contraponto
Por meio de nota, o Ministério da Saúde afirmou que tem investido em políticas de educação em saúde e em ações de planejamento reprodutivo.
De acordo com o texto, em 2019, o número de preservativos masculinos distribuídos na rede pública aumentou 38% em relação a 2018.
O órgão também afirma que os preservativos femininos tiveram sua distribuição aumentada em 351,5% em relação ao ano anterior. Segundo a nota, 7,3 milhões de unidades foram distribuídas aos postos de saúde.
Já o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos não respondeu aos questionamentos feitos pela reportagem do ND+.
Confira na íntegra a nota divulgada pelo Ministério da Saúde:
O Ministério da Saúde informa que investe permanentemente em políticas de educação em saúde e em ações para o planejamento reprodutivo, garantindo o acesso a nove métodos contraceptivos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). São eles: anticoncepcional injetável mensal; anticoncepcional injetável trimestral; minipílula; pílula combinada; diafragma; pílula anticoncepcional de emergência (ou pílula do dia seguinte); Dispositivo Intrauterino (DIU); preservativo feminino e preservativo masculino.
O Ministério da Saúde repassa os métodos para às Secretarias Estaduais de Saúde, sob demanda. Estas, por sua vez, realizam a distribuição aos municípios de acordo com suas necessidades. Em 2019, foram distribuídos 462 milhões de preservativos masculinos, o que representa aumento de 38% em relação ao ano de 2018. O número de preservativos femininos distribuídos foi de 7,3 milhões de unidades, aumento de 351,5% (1,6 milhão) na comparação com o ano anterior.
Em relação à Caderneta de Saúde do Adolescente, ela não foi descontinuada. Está em elaboração para adequação técnica às diferentes faixas etárias de adolescentes, como os menores de 14 anos, e aqueles entre 15 e 17 anos.
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