Não é apenas a história do Internacional que pode ser dividida em antes e depois de Fernandão: ele também atravessa a trajetória de cada colorado.
É impossível esquecer daquele dia em que nossas vidas começaram a ser ressignificadas. A tarde tipicamente chumbada de Porto Alegre naquele 10 de julho de 2004 reservava mais um Gre-Nal na vida de todos nós, como diria o locutor Haroldo de Souza. Em termos de importância, a possibilidade do milésimo gol dos clássicos superava qualquer consequência para a tabela do campeonato. E então, no decorrer do jogo, entra aquele atacante alto e estiloso, pisando pela primeira vez no gramado do Beira-Rio com a naturalidade de quem vai do quarto para a sala de casa.
Eu lembro bem dos pormenores daquela tarde porque passei os anos seguintes reconstruindo-a. Assim como reconstituindo as sensações que assaltavam os colorados na época anterior a Fernandão. Em seu primeiro toque, com o lado do pé e cabeça erguida, lembro de ter pensado: “pelo menos sabe passar uma bola”. Eram anos de ceticismo inflexível, como se qualquer tentativa nascesse malograda — o Beira-Rio era o Templo da Descrença e para lá partíamos já desprezando a possibilidade salvação, cegos pela dúvida. Atrás da goleira defendida por Tavarelli, pude presenciar o testaço inaugural que sacramentava o estreante como o artilheiro do Gol Mil. Fernandão chegava como quem sempre esteve.
Não é apenas a história do Internacional que pode ser dividida em antes e depois de Fernandão: ele também atravessa a trajetória de cada colorado. Quebrou o distanciamento que geralmente acomete a relação dos clubes grandes com seus torcedores para se tornar uma figura íntima de quem lhe foi contemporâneo: nós não vimos Fernandão, nós vivemos com Fernandão. Como se fosse praticamente um membro do círculo familiar mais próximo, de quem levaríamos uma foto na carteira, se ainda usássemos carteira.
Apesar do muito que fez dentro de campo com a camisa 9 vermelha, da categoria superior e do caráter decisivo, seu vulto extrapolou o futebol. Superou inclusive os títulos em que liderou o Inter: tornou-se, ele próprio, parte das memórias e narrativas pessoais, o que está muito além das querelas futebolísticas. Assim, houve um sopro de catarse naquele 19 de dezembro de 2006, quando o Inter chegou de sua campanha oriental diretamente para um latejante Beira-Rio. Eu sei bem disso porque o colorado que entrou naquela arquibancada não foi o mesmo que saiu. (Heráclito, ao se referir ao rio, falava também de sua margem.) Quando Fernandão puxou o canto de um estádio enfim desafogado, já não se tratava de futebol. Era, espontânea, apoteótica e definitiva, a Declaração Universal da Comunhão Colorada. O exato momento que delimita um antes e um depois.
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