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O conto "A Igreja do Diabo" de Machado de Assis é sobre a ideia do Diabo de fundar sua própria igreja, que ele acreditava ser uma forma eficaz de combater e destruir outras religiões. O Diabo imaginou sua igreja tendo escrituras, regras, cânones, rituais e sacramentos que ele copiaria das sessões religiosas tradicionais. Ele acreditava que enquanto outras religiões lutassem e se dividissem, sua igreja seria a única, sem mais ninguém à sua frente além de mitos e lemas. Deus permitiu que o Diabo fundasse sua igreja, mas sem apoio ou legitimidade. O Diabo desceu à terra e rapidamente espalhou sua nova doutrina, prometendo a seus seguidores as delícias de seu reinado, todas as glórias e os prazeres mais íntimos. O Diabo afirmava ser o verdadeiro Diabo, negando as histórias contadas por seus adversários.

Última atualização: 2023/04/20 9:45:29

MACHADO DE ASSIS – A Igreja do Diabo

Uma ideia “mirífica” (admirável, maravilhosa) – Conta um velho manuscrito Beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular.

Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

Porque não fundar minha própria igreja? Com todas as disputas no Céu acho oportuno e vantajoso. Pensando bem, escritura, breviário, regimento, e sacramentos, poderemos copiar das sessões tradicionais, os cânones que mais agradam. Assim terei a minha própria sessão com vinho, pão e um grande número de convidados que pensarão como eu.

Vejamos como estão sendo organizadas as atuais sessões, sobretudo depois da decisão dos céus de ter um único e verdadeiro Deus salvador da pátria. Assim pois será a minha igreja, concluiu ele: escritura, breviário, bíblia. Terei a minha sessão com vinho e pão, minhas prédicas, bulas, novenas, sacramentos e todos os aparelhos eclesiásticos. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de manifestantes. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única. Não acharei diante de mim nem Maomé, nem Lutero. Acharei mitos e motes. Há muitos modos falsos de afirmar, mas só um único modo de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu o braço direito como um gesto varonil.

Entre Deus e o Diabo não houve uma conversa amistosa. O diabo, com os olhos irados, apenas comunicou a ideia de fundar sua própria igreja, em clima de desafio. Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou: Que queres tu, perguntou o Senhor; Não venho pelo vosso servo, respondeu o Diabo, mas por todo o gado do século e dos séculos; Então explica-te, respondeu o Senhor.

A explicação é fácil, mas recolhei primeiro esse velho dando-lhe o melhor lugar; Sabes o que ele fez, perguntou o Senhor. Não, mas provavelmente é um dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o Céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço do aluguel, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata. Em poucas palavras, vou fundar uma igreja só para mim e meus seguidores. Estou cansado de minha desorganização e do meu reinado casual. É tempo de obter minha vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação. Boa ideia, não vos parece?

Vieste dizê-la, não a legitimar advertiu o Senhor; tendes razão, acudiu o Diabo. Mas o amor-próprio gosta de ouvir o aplauso dos que acreditam em Fake News; Senhor, desço à terra e vou lançar a pedra fundamental.

Velho retórico, murmurou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja, chama todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens, mas, vai! Vai!

A boa nova aos homens. Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um minuto. Deu-se pressa em enfiar as suas regras, como hábito de sua fama, e entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias do seu reinado, todas as glórias e deleites mais íntimos. Confessava que era o Diabo para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias que contavam seus adversários. Sim, sou o Diabo repetia ele. Não o terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único. O Diabo verdadeiro é o outro.

Poucos anos depois, notou o Diabo que muitos fiéis praticavam as antigas virtudes. Certos glutões comiam três ou quatro vezes por ano. Muitos avaros davam esmolas. Vários dilapidadores do erário restituíam pequenas quantias. Os fraudulentos falavam com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado.

A descoberta assombrou o Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito. Alguns casos eram incompreensíveis, como o de um droguista que envenenara uma geração inteira com falsos remédios e falta de atendimento. Em alguns lugares descobriu auxiliares ladrões. O Diabo deu com deles, lançou o procedimento e ele negou, dizendo que roubou à vista do Diabo e deu de presente a um parente que espalhou notícias falsas.

Um dos seus melhores apóstolos era um falsificador que possuía belas casas. Era a fraude em pessoa.

O Diabo voou de novo ao céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa de tão singular fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu, não o repreendeu, não triunfou daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e disse-lhe: Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.

Excertos de Machado de Assis, in… “Contos”. Editora Paz e Terra, 1996.

 

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